Por Iran Edson
Introdução
Um sacerdote católico romano, durante a Segunda Guerra Mundial, estava envolvido no movimento de resistência subterrânea de um país sob o poder militar nazista. Ele foi apanhado e pressionado a confessar. Muitas vidas estavam em suas mãos. Ele não mentiu e disse aos alemães que de fato, fazia parte do movimento. O resultado foi desastroso, todos morreram.[1] Se ele tivesse mentido, poderia ter salvado aquelas pessoas e também a si mesmo. Poderíamos considerar a mentira, em situações como estas, algo benéfico e justificável?
A Bíblia está cheia de textos que deixam claro que a mentira é pecado e que o cristão deve libertar-se deste mal. O mentiroso não herdará o reino dos céus, conforme lemos em Apocalipse 21:8: “Mas, quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos adúlteros, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte” (Ap 21:8). A introdução do pecado no mundo e nossa conseqüente escravidão começou com uma mentira: “certamente não morrereis” (Gn 3:4).
Que é errado mentir todos sabem, mas ficamos em conflito quando nos deparamos com situações nas quais a mentira parece ser a melhor saída. Seria errado o uso da mentira em tais situações? Há casos em que ela pode ser justificada e perdoada por Deus?
As mentiras na Bíblia
Há casos na Bíblia em que os servos de Deus mentiram e aparentemente foram aprovados por Deus. Como é possível entender tais casos numa perspectiva de um “Deus, que não pode mentir” (Tt 1:2)? Para isso analisaremos os casos mais indicativos desta aparente controvérsia.
Abraão mente que Sara é sua irmã
Sara era uma mulher muito bonita e Abraão temendo ser morto pelos egípcios elabora uma estratégia usando uma “meia-verdade” para ser livre da morte instruindo a Sara que minta ser ela sua irmã (Gn 12:13). Deus intervém por meio de um sonho e adverte faraó. É interessante notar que mesmo Abraão mentindo, além de não ser morto, ainda leva consigo riquezas e bens oferecidos por faraó. Norman L. Geisler argumenta claramente que este ato não foi aprovado por Deus e sugere que os anos de dificuldades que Abraão viveu posteriormente foram devidos à sua falta de fé. Ele explica: “Os presentes do faraó são compreensíveis. O faraó pode ter sentido obrigado a recompensar o constrangimento terrível que sua sociedade corrupta exercia sobre os que visitavam sua terra, e também por levar indevidamente sua mulher para o seu palácio. O adultério era estritamente proibido pela religião egípcia”.[2] Nenhuma recompensa houve por mentir.
Raabe mente para salvar os espias
Josué envia os espias a Jericó e Raabe os esconde e mente dizendo que eles não estavam mais ali e que não sabia onde estavam, e eles foram salvos (Js 2:3-6). O relato continua e afirma que Deus abençoou e poupou a ela e a sua família pelo seu ato. Aqui apresenta um dos mais tradicionais dilemas do assunto em questão. Teria Deus abençoado uma mentira? Geisler[3] explica que os comentaristas bíblicos se dividem apresentando dois argumentos: (1) Deus não a abençoou pela mentira, mas pela fé (Hb 11:31). Houve arrependimento, uma busca pelo Deus verdadeiro. (2) Raabe enfrenta um conflito moral tornando impossível falar a verdade e livrar os espias. Portanto, Deus não a responsabilizaria pela sua mentira. Devemos considerar que Raabe passou a temer a Deus, mas não O conhecia suficientemente, nem os seus estatutos. “Mas Deus, não levando em conta os tempos da ignorância” (At 17:30) dá a Raabe a oportunidade do arrependimento.
As parteiras hebréias mentem para salvar os bebês
Este é outro ponto forte do tema. Percebe-se que Sifrá e Pua temiam a Deus e por isso não mataram os bebês e ainda mentiram ao faraó que as mulheres hebréias davam à luz antes que elas chegassem. Este pode ser um, senão o maior, dos dilemas morais enfrentados na Bíblia, pois não se tratava de mentir para impedir que alguém matasse, se tratava de mentir ou matar com as próprias mãos. Muito mais importante que obedecer às leis governamentais é proteger vidas inocentes. “Há um conflito inevitável com a lei moral maior. Somente quando há um conflito raro, inevitável com umas das leis morais maiores de Deus, é que Ele suspende nosso dever para com a verdade”[4], comenta Geisler. Devemos obedecer ao governo quando não há conflito com as leis de Deus, porém, “antes obedecer a Deus que aos homens”. (At 5:29)
Analisando casos contemporâneos
Um paciente em fase terminal pergunta ao médico sobre seu real estado de saúde. Deveria, portanto dizer a verdade e correr o risco de um sofrimento maior? “Parece ser aceitável por todos os médicos ocultar a proximidade da morte a um doente terminal ou seu parente mais próximo, numa espécie de mentira piedosa e autoconsentida”[5], comenta Caruso Samel. É claro que nenhuma pessoa, que tem amor e respeito para com o próximo, pretende prejudica-lo ainda mais, porém, usar de um artifício do engano está longe do ideal. O apóstolo João é enfático quando diz que “nenhuma mentira vem da verdade” (1 Jo 2:21). O correto seria falar somente o necessário, não contando toda a verdade e se preservar do pecado. Pois se é da vontade de Deus, Ele pode restaurar-lhe a saúde. Assim apresenta White aos relatar:
"Muitos, temendo chocar ou desanimar um paciente com a declaração da verdade, dão-lhe falsas esperanças de cura, permitindo mesmo que desça ao túmulo sem o advertir do perigo. Tudo isso é falta de sabedoria. Talvez nem sempre seja seguro, nem o melhor a fazer, explicar ao doente toda a extensão de seu perigo. Isso poderia alarmá-lo e viria a retardar ou mesmo impedir o restabelecimento. [...] Mas, embora a verdade não possa ser dita inteiramente em todas as ocasiões, nunca é necessário nem justificável enganar. Nunca o médico ou a enfermeira devem descer à mentira. Aquele que assim faz coloca-se em posição em que Deus não pode com ele cooperar; e, perdendo a confiança de seus clientes, está desperdiçando um dos mais eficazes auxílios para a restauração."[6]
Ron du Preez[7], em seu artigo para a revista “Diálogo” entitulado “Deveríamos sempre dizer a verdade, mesmo com risco de vida?”, relata o fato ocorrido na época em que o exército de Hitler caçava os judeus. Havia uma jovem adventista temente a Deus e, espelhada em Jesus, tinha um amor grandioso pelos semelhantes. Mesmo sabendo do risco que corria, deu proteção e abrigo a Fritz, um menino judeu. Um dia, o exército bate à sua porta e pergunta: “Fritz está em sua casa?” E agora? O que fazer? Confiando na atuação divina, a Sra. Hasel encarou o soldado e disse: “Como oficial do exército alemão você sabe qual é sua responsabilidade, e você está convidado a cumpri-la”. Com o sentimento de culpa sobre seus ombros, o nazista deu meia-volta e foi embora.
Muitos poderiam ter contado uma mentira, pois acreditam que “é correto mentir quando o mentir realizará um bem maior do que o não mentir”.[8] Porém,“veracidade e integridade são atributos de Deus, e o que possui estas qualidades possui um poder invencível”[9]. A Sra. Hasel possuía essas virtudes e experimentou este poder de livramento vindo do Salvador.
Acompanhe agora, o caso de Falcão[10], um jovem ex-traficante do Rio de Janeiro, que cansado da vida de erros decidiu entregar a vida a Cristo e converteu-se. Um dia foi à casa do pastor de sua igreja e diz que precisa ir embora, pois corria risco de vida. Quando estavam se despedindo, perceberam a chegada dos traficantes. Ele se escondeu dentro de um armário enquanto o pastor foi abordado pelos bandidos que perguntaram por Falcão. Iriam executá-lo por saber demais. O pastor confirmou que ele esteve em sua casa, mas, como ele não sabia, emprestou-lhe dinheiro para visitar um parente doente que morava muito distante e, para ficar ainda mais real, convidou-os para entrar e tomar um chá com ele. Diferente da Sra. Hasel, o pastor não depositou a confiança no poder divino. Assim como Rebeca (Gn 27), o pastor quis ajudar a Deus a resolver seus problemas.
Os traficantes foram embora, porém, o pastor correu um grande risco de tudo dar errado. Ninguém podia garantir que os traficantes, cheios de ódio e desconfiança, dariam meia-volta deixando-os em paz. Poderiam perceber algum traço de mentira e tudo estaria perdido. Quando uma pessoa está sob pressão e medo, a mentira pode deixá-lo em situação que, a qualquer deslize, pode ser desmascarado. O psicólogo Airton Amélio da Silva, professor de comunicação não-verbal do Instituto de Psicologia da USP afirma que “os sinais faciais e a voz são as maiores pistas da falsidade”[11], e a pessoa que é temente a Deus, que não faz uso da mentira no seu dia-a-dia, está ainda mais vulnerável a descuidar-se e deixar transparecer o que realmente sente. “Às vezes por uma fração de segundo deixamos escapar a verdade”[12], comenta Airton. Isso pode colocar em risco não só a pessoa que está sendo protegida, mas também, a pessoa que tentou salvá-la por meio do engano.
O sábio Salomão adverte que, principalmente em situações como estas, “nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso” (Pv 30:6). Estamos tão acostumados a mentir em situações tão banais que, quando vemos ou ouvimos casos em que a mentira foi usada para “salvar” vidas, louvamos este ato “heróico” por não confiarmos plenamente na providência divina.
De acordo com Geisler[13], o cristão nunca deve mentir para salvar uma vida. Ele afirma que (1) há apenas um dever: contar a verdade e (2) a escolha não é, neste caso, entre mentir ou matar, como no caso das parteiras hebréias. Pelo contrário, a escolha está entre mentir e deixar que outra pessoa mate. O cristão deve contar a verdade e o problema fica com o assassino e o que ele fará com a verdade. “Ao resolver sobre qualquer caminho a seguir em nossos atos, não devemos indagar se podemos ver que resultará mal do mesmo, mas se está de acordo com a vontade de Deus.”[14]
Conclusão
Deus permite que situações de crise e provações aconteçam para que se manifeste a grandeza do Seu poder. Podemos ver claramente isso nos relatos bíblicos da história de Daniel e seus amigos Sadraque, Mesaque e Abednego que foram fiéis a Deus e Ele os livrou tanto do fogo quanto dos leões. A ordem do rei Nabucodonosor de adorar os deuses pagãos poderia ser atendida com uma falsa adoração, poderiam prostrar-se e adorar ao Deus verdadeiro fingindo ser aos outros deuses, uma mentira que não prejudicaria ninguém e os pouparia da punição. No entanto, a resposta daqueles fiéis jovens foi direta e firme em suas convicções: “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei” (Dn 3:17). Nem mesmo Daniel que fazia parte do conselho real ficou livre da ordem do rei, pelo contrário, seus adversários queriam matá-lo a qualquer custo. O próprio rei posteriormente, ao permitir que se cumprisse o decreto em Daniel, fortalece-o com palavras de reconhecimento e temor: “teu Deus, a quem tu continuamente serves, Ele te livrará” (Dn 6:16).
Não devemos temer em falar a verdade, devemos depositar nossa confiança em Deus.
Deixai que vosso caso descanse em Suas mãos. Seja vossa oração: “Senhor, apresento-Te minha petição. Em Ti ponho minha confiança, e rogo a bênção que Tu vejas que será para minha utilidade presente e futura e para meu eterno bem”. Ao vos erguerdes dos joelhos, crede! Quando o inimigo vier com suas trevas, “Regozijai-vos, sempre, no Senhor; outra vez digo: regozijai-vos.” (Fp 4:4). Os que isto fazem têm uma vida de contentamento.[15]
O problema da mentira é que quando a aceitamos uma vez, mesmo que para “o bem”, estamos nos condicionando a aceitá-la cada vez mais, podendo cair no erro de nos acostumarmos com ela e passar a usá-la em todas as situações. Se tomarmos como base o generalismo e crermos que há ocasiões em que a regra pode ser quebrada, então é certo afirmar que no final do grande conflito, quando os cristãos estiverem sendo perseguidos e capturados, pode-se negar a fé de “mentirinha” para ser poupado a vida, pois estaria fazendo um bem maior.
O cristão deve ter seus princípios fundamentados em Cristo Jesus e lutar para ser mais semelhante a Ele que “em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4:15). Ellen G. White fortalece este conceito admoestando aos cristãos: “Nunca prevariqueis; nunca profirais mentiras, quer por preceito ou exemplo. [...] Sede retos e constantes. Mesmo uma leve mentira não deve ser permitida”.[16] Deus tem uma recompensa para aqueles que confiam em seu poder protetor e que, mesmo correndo risco de vida, entregam as decisões nas Suas mãos. Ele diz: “Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Ap 2:10). Não vale a pena deixar-nos iludir pela saídas que a mentira aparentemente nos oferece. White nos lembra de que “Melhor é morrer do que pecar; melhor é sofrer necessidade do que enganar; melhor é sofrer fome do que mentir. Todos os que são tentados enfrentem Satanás com as palavras: ‘Bem-aventurado aquele que teme ao Senhor e anda nos Seus caminhos! [...] Feliz serás, e tudo te irá bem.’ (Sl 128:1 e 2)”.[17]
A Bíblia está cheia de textos que deixam claro que a mentira é pecado e que o cristão deve libertar-se deste mal. O mentiroso não herdará o reino dos céus, conforme lemos em Apocalipse 21:8: “Mas, quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos adúlteros, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte” (Ap 21:8). A introdução do pecado no mundo e nossa conseqüente escravidão começou com uma mentira: “certamente não morrereis” (Gn 3:4).
Que é errado mentir todos sabem, mas ficamos em conflito quando nos deparamos com situações nas quais a mentira parece ser a melhor saída. Seria errado o uso da mentira em tais situações? Há casos em que ela pode ser justificada e perdoada por Deus?
As mentiras na Bíblia
Há casos na Bíblia em que os servos de Deus mentiram e aparentemente foram aprovados por Deus. Como é possível entender tais casos numa perspectiva de um “Deus, que não pode mentir” (Tt 1:2)? Para isso analisaremos os casos mais indicativos desta aparente controvérsia.
Abraão mente que Sara é sua irmã
Sara era uma mulher muito bonita e Abraão temendo ser morto pelos egípcios elabora uma estratégia usando uma “meia-verdade” para ser livre da morte instruindo a Sara que minta ser ela sua irmã (Gn 12:13). Deus intervém por meio de um sonho e adverte faraó. É interessante notar que mesmo Abraão mentindo, além de não ser morto, ainda leva consigo riquezas e bens oferecidos por faraó. Norman L. Geisler argumenta claramente que este ato não foi aprovado por Deus e sugere que os anos de dificuldades que Abraão viveu posteriormente foram devidos à sua falta de fé. Ele explica: “Os presentes do faraó são compreensíveis. O faraó pode ter sentido obrigado a recompensar o constrangimento terrível que sua sociedade corrupta exercia sobre os que visitavam sua terra, e também por levar indevidamente sua mulher para o seu palácio. O adultério era estritamente proibido pela religião egípcia”.[2] Nenhuma recompensa houve por mentir.
Raabe mente para salvar os espias
Josué envia os espias a Jericó e Raabe os esconde e mente dizendo que eles não estavam mais ali e que não sabia onde estavam, e eles foram salvos (Js 2:3-6). O relato continua e afirma que Deus abençoou e poupou a ela e a sua família pelo seu ato. Aqui apresenta um dos mais tradicionais dilemas do assunto em questão. Teria Deus abençoado uma mentira? Geisler[3] explica que os comentaristas bíblicos se dividem apresentando dois argumentos: (1) Deus não a abençoou pela mentira, mas pela fé (Hb 11:31). Houve arrependimento, uma busca pelo Deus verdadeiro. (2) Raabe enfrenta um conflito moral tornando impossível falar a verdade e livrar os espias. Portanto, Deus não a responsabilizaria pela sua mentira. Devemos considerar que Raabe passou a temer a Deus, mas não O conhecia suficientemente, nem os seus estatutos. “Mas Deus, não levando em conta os tempos da ignorância” (At 17:30) dá a Raabe a oportunidade do arrependimento.
As parteiras hebréias mentem para salvar os bebês
Este é outro ponto forte do tema. Percebe-se que Sifrá e Pua temiam a Deus e por isso não mataram os bebês e ainda mentiram ao faraó que as mulheres hebréias davam à luz antes que elas chegassem. Este pode ser um, senão o maior, dos dilemas morais enfrentados na Bíblia, pois não se tratava de mentir para impedir que alguém matasse, se tratava de mentir ou matar com as próprias mãos. Muito mais importante que obedecer às leis governamentais é proteger vidas inocentes. “Há um conflito inevitável com a lei moral maior. Somente quando há um conflito raro, inevitável com umas das leis morais maiores de Deus, é que Ele suspende nosso dever para com a verdade”[4], comenta Geisler. Devemos obedecer ao governo quando não há conflito com as leis de Deus, porém, “antes obedecer a Deus que aos homens”. (At 5:29)
Analisando casos contemporâneos
Um paciente em fase terminal pergunta ao médico sobre seu real estado de saúde. Deveria, portanto dizer a verdade e correr o risco de um sofrimento maior? “Parece ser aceitável por todos os médicos ocultar a proximidade da morte a um doente terminal ou seu parente mais próximo, numa espécie de mentira piedosa e autoconsentida”[5], comenta Caruso Samel. É claro que nenhuma pessoa, que tem amor e respeito para com o próximo, pretende prejudica-lo ainda mais, porém, usar de um artifício do engano está longe do ideal. O apóstolo João é enfático quando diz que “nenhuma mentira vem da verdade” (1 Jo 2:21). O correto seria falar somente o necessário, não contando toda a verdade e se preservar do pecado. Pois se é da vontade de Deus, Ele pode restaurar-lhe a saúde. Assim apresenta White aos relatar:
"Muitos, temendo chocar ou desanimar um paciente com a declaração da verdade, dão-lhe falsas esperanças de cura, permitindo mesmo que desça ao túmulo sem o advertir do perigo. Tudo isso é falta de sabedoria. Talvez nem sempre seja seguro, nem o melhor a fazer, explicar ao doente toda a extensão de seu perigo. Isso poderia alarmá-lo e viria a retardar ou mesmo impedir o restabelecimento. [...] Mas, embora a verdade não possa ser dita inteiramente em todas as ocasiões, nunca é necessário nem justificável enganar. Nunca o médico ou a enfermeira devem descer à mentira. Aquele que assim faz coloca-se em posição em que Deus não pode com ele cooperar; e, perdendo a confiança de seus clientes, está desperdiçando um dos mais eficazes auxílios para a restauração."[6]
Ron du Preez[7], em seu artigo para a revista “Diálogo” entitulado “Deveríamos sempre dizer a verdade, mesmo com risco de vida?”, relata o fato ocorrido na época em que o exército de Hitler caçava os judeus. Havia uma jovem adventista temente a Deus e, espelhada em Jesus, tinha um amor grandioso pelos semelhantes. Mesmo sabendo do risco que corria, deu proteção e abrigo a Fritz, um menino judeu. Um dia, o exército bate à sua porta e pergunta: “Fritz está em sua casa?” E agora? O que fazer? Confiando na atuação divina, a Sra. Hasel encarou o soldado e disse: “Como oficial do exército alemão você sabe qual é sua responsabilidade, e você está convidado a cumpri-la”. Com o sentimento de culpa sobre seus ombros, o nazista deu meia-volta e foi embora.
Muitos poderiam ter contado uma mentira, pois acreditam que “é correto mentir quando o mentir realizará um bem maior do que o não mentir”.[8] Porém,“veracidade e integridade são atributos de Deus, e o que possui estas qualidades possui um poder invencível”[9]. A Sra. Hasel possuía essas virtudes e experimentou este poder de livramento vindo do Salvador.
Acompanhe agora, o caso de Falcão[10], um jovem ex-traficante do Rio de Janeiro, que cansado da vida de erros decidiu entregar a vida a Cristo e converteu-se. Um dia foi à casa do pastor de sua igreja e diz que precisa ir embora, pois corria risco de vida. Quando estavam se despedindo, perceberam a chegada dos traficantes. Ele se escondeu dentro de um armário enquanto o pastor foi abordado pelos bandidos que perguntaram por Falcão. Iriam executá-lo por saber demais. O pastor confirmou que ele esteve em sua casa, mas, como ele não sabia, emprestou-lhe dinheiro para visitar um parente doente que morava muito distante e, para ficar ainda mais real, convidou-os para entrar e tomar um chá com ele. Diferente da Sra. Hasel, o pastor não depositou a confiança no poder divino. Assim como Rebeca (Gn 27), o pastor quis ajudar a Deus a resolver seus problemas.
Os traficantes foram embora, porém, o pastor correu um grande risco de tudo dar errado. Ninguém podia garantir que os traficantes, cheios de ódio e desconfiança, dariam meia-volta deixando-os em paz. Poderiam perceber algum traço de mentira e tudo estaria perdido. Quando uma pessoa está sob pressão e medo, a mentira pode deixá-lo em situação que, a qualquer deslize, pode ser desmascarado. O psicólogo Airton Amélio da Silva, professor de comunicação não-verbal do Instituto de Psicologia da USP afirma que “os sinais faciais e a voz são as maiores pistas da falsidade”[11], e a pessoa que é temente a Deus, que não faz uso da mentira no seu dia-a-dia, está ainda mais vulnerável a descuidar-se e deixar transparecer o que realmente sente. “Às vezes por uma fração de segundo deixamos escapar a verdade”[12], comenta Airton. Isso pode colocar em risco não só a pessoa que está sendo protegida, mas também, a pessoa que tentou salvá-la por meio do engano.
O sábio Salomão adverte que, principalmente em situações como estas, “nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso” (Pv 30:6). Estamos tão acostumados a mentir em situações tão banais que, quando vemos ou ouvimos casos em que a mentira foi usada para “salvar” vidas, louvamos este ato “heróico” por não confiarmos plenamente na providência divina.
De acordo com Geisler[13], o cristão nunca deve mentir para salvar uma vida. Ele afirma que (1) há apenas um dever: contar a verdade e (2) a escolha não é, neste caso, entre mentir ou matar, como no caso das parteiras hebréias. Pelo contrário, a escolha está entre mentir e deixar que outra pessoa mate. O cristão deve contar a verdade e o problema fica com o assassino e o que ele fará com a verdade. “Ao resolver sobre qualquer caminho a seguir em nossos atos, não devemos indagar se podemos ver que resultará mal do mesmo, mas se está de acordo com a vontade de Deus.”[14]
Conclusão
Deus permite que situações de crise e provações aconteçam para que se manifeste a grandeza do Seu poder. Podemos ver claramente isso nos relatos bíblicos da história de Daniel e seus amigos Sadraque, Mesaque e Abednego que foram fiéis a Deus e Ele os livrou tanto do fogo quanto dos leões. A ordem do rei Nabucodonosor de adorar os deuses pagãos poderia ser atendida com uma falsa adoração, poderiam prostrar-se e adorar ao Deus verdadeiro fingindo ser aos outros deuses, uma mentira que não prejudicaria ninguém e os pouparia da punição. No entanto, a resposta daqueles fiéis jovens foi direta e firme em suas convicções: “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei” (Dn 3:17). Nem mesmo Daniel que fazia parte do conselho real ficou livre da ordem do rei, pelo contrário, seus adversários queriam matá-lo a qualquer custo. O próprio rei posteriormente, ao permitir que se cumprisse o decreto em Daniel, fortalece-o com palavras de reconhecimento e temor: “teu Deus, a quem tu continuamente serves, Ele te livrará” (Dn 6:16).
Não devemos temer em falar a verdade, devemos depositar nossa confiança em Deus.
Deixai que vosso caso descanse em Suas mãos. Seja vossa oração: “Senhor, apresento-Te minha petição. Em Ti ponho minha confiança, e rogo a bênção que Tu vejas que será para minha utilidade presente e futura e para meu eterno bem”. Ao vos erguerdes dos joelhos, crede! Quando o inimigo vier com suas trevas, “Regozijai-vos, sempre, no Senhor; outra vez digo: regozijai-vos.” (Fp 4:4). Os que isto fazem têm uma vida de contentamento.[15]
O problema da mentira é que quando a aceitamos uma vez, mesmo que para “o bem”, estamos nos condicionando a aceitá-la cada vez mais, podendo cair no erro de nos acostumarmos com ela e passar a usá-la em todas as situações. Se tomarmos como base o generalismo e crermos que há ocasiões em que a regra pode ser quebrada, então é certo afirmar que no final do grande conflito, quando os cristãos estiverem sendo perseguidos e capturados, pode-se negar a fé de “mentirinha” para ser poupado a vida, pois estaria fazendo um bem maior.
O cristão deve ter seus princípios fundamentados em Cristo Jesus e lutar para ser mais semelhante a Ele que “em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4:15). Ellen G. White fortalece este conceito admoestando aos cristãos: “Nunca prevariqueis; nunca profirais mentiras, quer por preceito ou exemplo. [...] Sede retos e constantes. Mesmo uma leve mentira não deve ser permitida”.[16] Deus tem uma recompensa para aqueles que confiam em seu poder protetor e que, mesmo correndo risco de vida, entregam as decisões nas Suas mãos. Ele diz: “Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Ap 2:10). Não vale a pena deixar-nos iludir pela saídas que a mentira aparentemente nos oferece. White nos lembra de que “Melhor é morrer do que pecar; melhor é sofrer necessidade do que enganar; melhor é sofrer fome do que mentir. Todos os que são tentados enfrentem Satanás com as palavras: ‘Bem-aventurado aquele que teme ao Senhor e anda nos Seus caminhos! [...] Feliz serás, e tudo te irá bem.’ (Sl 128:1 e 2)”.[17]
Referências:
[1] R. N. Champlin. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. Dicionário M-Z, volume 7, 2.ª edição, São Paulo: Hagnus, 2001, p. 4742.
[2] Norman L. Geisler, Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002, p. 552 e 553.
[3] Geisler. Ética cristã: alternativas e questões contemporâneas, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 553.
[4] Geisler. Enciclopédia, p. 555.
[5] Caruso Samel. Reflexões sobre os sentimentos. Rio de janeiro, RJ: Centro Redentor, 2005, p. 91.
[6] Ellen G. White, a Ciência do bom viver. , in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
[7] Ron du Preez, “Deveríamos sempre dizer a verdade, mesmo com risco de vida?” disponível em:
[9] White. Minha consagração hoje: meditação matinal. in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
[10] Este relato foi contado em um chat de discussão de perguntas e respostas bíblicas em 28 dez. 2006.
[11] Rodrigo Ratier, “Abaixo a mentira, vote na verdade”. In Galileu, São Paulo: Globo, 11 out. 2000, v. 9, n. 111, p. 64.
[12] Idem.
[13] Norman L. Geisler; Paul D. Feinberg, Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 330.
[14] White., Patriarcas e Profetas, in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
[15] White. Mente, caráter e personalidade. in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
[16] White. Minha consagração, p. 331.
[17] White. Vidas que falam: meditação matinal. in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
BIBLIOGRAFIA
CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo: Dicionário M-Z, volume 7, São Paulo: Hagnus, 2001.
GEISLER, Norman L. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002.
_________________. Ética cristã: alternativas e questões contemporâneas, São Paulo: Vida Nova, 2005.
GEISLER, Norman L.; Paul D. Feinberg. Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.
RATIER, Rodrigo. “Abaixo a mentira, vote na verdade”. In: Galileu, São Paulo: Globo, 11 out. 2000, v. 9, n. 111.
SAMEL, Caruso. Reflexões sobre os sentimentos. Rio de janeiro, RJ: Centro Redentor, 2005.
PREEZ, Ron du. “Deveríamos sempre dizer a verdade, mesmo com risco de vida?” Disponível em:
WHITE, Ellen G., a Ciência do bom viver in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
_____________. Mente, caráter e personalidade in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
_____________. Minha consagração hoje: meditação matinal in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
_____________. Patriarcas e Profetas, in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
_____________. Vidas que falam: meditação matinal in CD-ROM: Obras de Ellen G. White. Versão 2.0 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s.d.).
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